Prontuário Médico e a cultura do não-registro

23/04/2024 às 09:34
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“Direito e Saúde”     

     

Recentemente, tive uma conversa interessante com uma advogada da minha equipe, sobre o tema Prontuário Médico. Ela questionou o alto número de casos de defesa médica que seriam relativamente simples, mas que se tornam um grande problema em função da ausência de registros por parte dos médicos. Minha resposta não foi a mais animadora: disse que infelizmente isso é normal, e que trabalhamos constantemente nestas condições. Frustrada, ela insistiu: mas qual é o sentido de se fazer tudo corretamente, mas não registrar de forma adequada? Concordei que não faz o menor sentido… mas ainda assim, cada vez mais médicos atuam exatamente desta forma.

Em quase 2 décadas de atuação na defesa de médicos, posso afirmar categoricamente que a precariedade (ou a absoluta ausência) de registros é o nosso maior desafio. Quando são processados pelos pacientes, os médicos nos narram uma realidade para sustentar a defesa, mas ao analisar a documentação médica, muitas vezes a narrativa dos médicos não pode ser confirmada, impossibilitando sua comprovação em juízo. Com isso, ainda que a tese de defesa seja factível e tecnicamente coerente, uma simples narrativa sem comprovação documental dificilmente será suficiente para ter sucesso no processo, sobretudo quanto enfrentamos o poderoso paciente-consumidor do século XXI.

Fazendo uma analogia entre Medicina e Direito, podemos equiparar o médico que atua corretamente, mas não registra seus atos, ao advogado que mentaliza uma excelente estratégia jurídica, mas não a formaliza no processo. Existindo só no campo das ideias, nem a melhor estratégia processual norteará o julgamento do caso, e dará forma à sentença. No Direito, trabalhamos sob o princípio de “o que não está nos autos, não está no mundo”, e esta lógica também se aplica na medicina, através do “se não está no prontuário, não aconteceu”. A própria etimologia da palavra prontuário confirma a tese, visto que se origina do latim “promptuarium“, que significa “lugar onde se guardam coisas que devem estar à mão”.

O fato é que, em pleno 2024, muitos médicos insistem em não registrar adequadamente seus atos, sobretudo os que atuam na iniciativa privada. Muitos não o fazem porque a atividade é trabalhosa e consome tempo, um ativo altamente escasso na vida do médico-empresário do Século XXI. Outros negligenciam a obrigação por confiar na memória, acreditando que em caso de problemas, basta fazer o registro tardiamente, mediante a necessidade. Trata-se de um grande erro, pois conforme retrata um antigo provérbio chinês, “a tinta mais pobre de cor, vale mais que a melhor memoria”. Há ainda médicos que creem existir somente o prontuário hospitalar, não guardando nenhum registro em sua clínica ou consultório.

Mediante estas e outras justificativas igualmente infundadas, o registro em prontuário passou a ser visto por muitos médicos como uma atividade burocrática e dispensável, sendo terceirizada à equipe administrativa, ou simplesmente ignorada. Assim, a cultura do não-registro se proliferou na iniciativa privada, sem chamar a atenção por não trazer consequências imediatas aos médicos, pois via de regra, o prontuário médico não precisa ser utilizado como meio de prova.

Contudo, basta que um paciente insatisfeito solicite a cópia do prontuário (direito previsto no Artigo 88 do Código de Ética Médica) para que surjam dúvidas por parte dos médicos, como: preciso ter um prontuário na minha clínica ou consultório? Qual o seu conteúdo obrigatório? Sou obrigado a entregá-lo ao paciente? Para que não perdurem dúvidas como estas, vejamos o que dizem as normas sobre o tema.

O art. 1º da Resolução CFM 1.638 definiu o prontuário medico há 22 anos atrás, como o “documento único constituído de um conjunto de informações, sinais e imagens registradas, geradas a partir de fatos, acontecimentos e situações sobre a saúde do paciente e a assistência a ele prestada, de caráter legal, sigiloso e científico, que possibilita a comunicação entre membros da equipe multiprofissional e a continuidade da assistência prestada ao indivíduo”. Esta definição já é suficiente para esclarecer alguns pontos tão comumente questionados.

 Em relação à obrigatoriedade, o caput do art. 87 do Código de Ética Médica (Resolução CFM 1.931 de 2009) veda ao médico “deixar de elaborar prontuário legível para cada paciente”. Notem que o artigo assevera a letra legível, o que pode soar desnecessário. Mas estamos falando de médicos, profissão na qual a letra ilegível é uma marca registrada. Ainda sobre a obrigatoriedade, a Resolução CFM 1.638 responsabiliza o médico assistente, a chefia da equipe, a chefia da clínica e a direção técnica da unidade pelo preenchimento do prontuário, assim como sua guarda e manuseio. No mesmo sentido, o § 2º do art. 87 do CEM aponta a obrigação ao médico e à instituição que assiste o paciente.

O art. 5º da Resolução CFM 1.638 delimita o conteúdo mínimo obrigatório do prontuário médico, apontando como obrigatórios a identificação completa do paciente, a anamnese, o exame físico, os exames complementares e seus resultados, as hipóteses diagnósticas, o diagnóstico definitivo e tratamento efetuado. Deve constar ainda no prontuário a evolução diária do paciente, a discriminação de todos os procedimentos aos quais foi submetido, e a identificação dos profissionais que os realizaram (com assinatura e CRM).

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Não custa repetir: este é o conteúdo mínimo obrigatório, definido pelo CFM 22 anos atrás, em um contexto totalmente diverso. Atualmente, existem diversos outros documentos e informações referentes à jornada do paciente que devem constar no prontuário, para que o médico trabalhe com segurança. Este conteúdo deve ser objeto de um aprimoramento constante, com o objetivo de mitigar os riscos profissionais, que crescem exponencialmente a cada dia. O conteúdo do prontuário é novamente abordado no Código de Ética Médica, em seu § 1º do Art. 87: “O prontuário deve conter os dados clínicos necessários para a boa condução do caso, sendo preenchido, em cada avaliação, em ordem cronológica com data, hora, assinatura e número de registro do médico no Conselho Regional de Medicina.”

Portanto, a gestão completa e adequada do prontuário médico é uma obrigação inarredável do médico, sob as óticas ética e legal. Em caso de questionamentos à sua conduta, trata-se do principal meio de prova da correição de seus atos. Não atender a esta obrigação configura infração ética e violação dos direitos do paciente. Portanto, em uma eventual ação indenizatória, antes mesmo de se apurar a existência erro, dano e culpa, o médico já é considerado negligente, e responsável pela inexistência de provas.

Vale lembrar que os tribunais brasileiros consideram a relação médico-paciente uma relação de consumo, o que já representa um grande fator de desequilíbrio a favor dos pacientes. Com isso, nos muitos casos em que o juiz aplica a inversão do ônus da prova, o paciente-consumidor só precisa alegar os fatos conforme sua conveniência, cabendo ao médico-fornecedor provar o contrário. Não havendo registros do ocorrido, as provas que sustentariam sua ausência de culpa não existem por sua própria negligência, tornando sua condenação uma grande probabilidade. Em regra o ônus da prova é do médico, portanto, a ausência de registros nunca o paciente.

Os dados mais recentes divulgados no Infográfico 2024 – Judicialização da Medicina e da Saúde, indicam que os riscos profissionais dos médicos crescem a cada ano, fato que certamente é afetado pelas falhas no contexto do prontuário médico. Portanto, fica o alerta: embora não existam conflitos em conciliar a atarefada vida de médico com as de empresário, líder, influenciador, figura pública, professor, pesquisador e tantas outras, é preciso ser médico em primeiro lugar.

Renato Assis é advogado há 18 anos, especialista em Direito Médico e Empresarial, professor e empresário. É conselheiro jurídico e científico da ANADEM. Seu escritório de advocacia atua em defesa de médicos em todo o país.

Sobre o autor
Renato Assis

Advogado, professor, escritor, palestrante, debatedor, conferencista; Graduado em Direito pela Universidade FUMEC-MG; Pós-graduado em Direito Processual pela PUC-MG; Pós-graduado em Direito Médico pela Universidade de Araraquara/SP; Pós-Graduando em MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/RJ; Professor do curso de Direito Médico, Odontológico e Direito da Regulação da UCA (Universidade Corporativa da ANADEM); Especialista em Terceiro Setor e Direito Médico;

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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