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A quem interessa o aumento dos cursos de medicina?

23/04/2024 às 09:31
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Não precisamos de mais cursos, ou de mais médicos. Precisamos de políticas públicas que visem a qualidade do ensino, e a equidade na distribuição dos médicos.

O Governo Federal anunciou, através dos ministérios da Saúde e da Educação, a publicação de edital para abertura de 95 novos cursos de medicina. O objetivo seria alocar médicos nas regiões carentes através da instalação de cursos nas localidades. Além disso, o governo visa alcançar a média de 3,3 médicos por mil habitantes recomendada pela OCDE.

A política anunciada possui duas grandes contradições: a primeira na identificação do problema, e a segunda na escolha da solução. Estes equívocos foram apontados com veemência por diversas entidades do setor da saúde, como Conselho Federal de Medicina – CFM e Associação Médica Brasileira – AMB. Contudo, todos os apelos destas e de outras entidades foram completamente ignorados pelo governo.

Em primeiro lugar, não precisamos de mais cursos de medicina no Brasil. Somos o segundo país do mundo em número de cursos, atrás somente da índia, que possui uma população 6 vezes maior. Aumentar a quantidade de cursos de medicina não resolve o problema proposto, e ainda agrava vários outros. Temos, atualmente, 389 cursos em atividade, 167 deles (ou 42,9%) abertos nos últimos 10 anos, através de políticas idênticas. Só este número já supera o total de escolas médicas da China, que possui 164 cursos e uma população 8 vezes maior.

Em segundo lugar, não precisamos de mais médicos. Possuímos mais de 564 mil profissionais, com uma média de 2,7 médicos por mil habitantes, superando países como Japão (2,5) EUA (2,6). Nossos 389 cursos disponibilizam 42 mil vagas por ano, gerando um crescimento da população médica de 120% nos últimos 10 anos. Até 2035 teremos mais de 1 milhão de profissionais, e seremos o país com mais médicos em todo o mundo.

A verdade é que já temos cursos em excesso, que geram um número suficiente de profissionais. Nosso problema é a inequidade na distribuição dos médicos no território nacional, o que passa a falsa impressão de escassez de profissionais. Além disso, sofremos com a baixa de qualidade de ensino que gera profissionais tecnicamente deficientes, quadro que se agravou nos últimos anos justamente pela implementação desta mesma política em governos passados. Dezenas de cursos de medicina foram criados em municípios carentes, contudo, segundo o CFM mais de 80% destes municípios possuem déficit na estrutura mínima necessária para abrigar os cursos, comprometendo a qualidade do ensino.

Como se não bastasse, segundo a AMB menos de 20% dos formandos permanece na localidade dos estudos, havendo uma intensa migração para as principais capitais do país, onde é registrado excesso de médicos e alta concorrência. Esta migração ocorre justamente porque as melhores oportunidades profissionais estão nas cidades mais desenvolvidas, e não nas mais carentes, que sequer oferecem uma boa qualidade de vida para os médicos e suas famílias. Por este motivo, mais de 50% dos médicos do país atuam somente em 3 das 27 unidades federativas: MG, RJ e SP.

Esta inequidade gera um brutal paradoxo: 62% dos médicos atuam nas 49 cidades que possuem mais de 500 mil habitantes, embora elas concentrem somente 32% da população. Por outro lado, os 4.890 municípios com até 50 mil habitantes abrigam pouco mais de 8% dos médicos, embora concentrem 65,8 milhões de pessoas. Além, disso, o setor privado é cada vez mais procurado em função do sucateamento da saúde pública. Segundo a AMB, somente 12,1% dos jovens médicos entrevistados ao concluir a residência médica se interessam em atuar na rede pública.

Estes números comprovam o óbvio: a política recém anunciada repetirá o fracasso da anterior. Sob o frágil discurso de levar médicos a regiões carentes, criam-se mais e mais cursos sem qualquer compromisso com a qualidade do ensino. A política até seria defensável (sob o infundado argumento de que “é melhor um médico ruim, do que nenhum médico”) caso os profissionais, ainda que mal formados, criassem raízes nos municípios carentes. Contudo, nem isso ocorre!

O mesmo se aplica a outras políticas fracassadas absurdamente reeditadas, como o programa Mais Médicos. Segundo o CFM, a maioria dos 8.233 cubanos que vieram para o Brasil na primeira edição, se estabeleceu em municípios da faixa litorânea, próximos aos grandes centros. O estado que mais recebeu cubanos foi SP, o mais desenvolvido do país (e que já abrigava quase 30% dos médicos brasileiros). Por outro lado, a piora da qualidade parece ser uma obsessão do governo, pois um dos pontos mais criticados na primeira versão do programa foi a dispensa da revalidação do diploma, e adivinhem: a medida foi reeditada em 2023.

Por que não criar políticas públicas para solucionar os problemas estruturais, sobretudo no sistema de saúde dos municípios carentes? Com condições de trabalho minimamente dignas, certamente haveria médicos interessados. Medidas neste sentido corrigiriam a inequidade na distribuição de médicos no Brasil, assim como na alta concorrência das principais capitais do país. Contudo, o foco do governo federal é aumentar indiscriminadamente o número de cursos, sem qualquer preocupação com a qualidade, perpetuando o atual quadro de estelionato educacional praticado por muitos cursos de medicina, sobretudo os particulares, que representam 80% do total.

Talvez a explicação para estas medidas seja o fato de os cursos de medicina serem um mercado bilionário, com mensalidades que chegam a R$ 20 mil. Um cálculo bem simples mostra as vultuosas cifras do negócio: cada turma de 60 alunos, com mensalidades médias de R$ 10 mil, gera um faturamento anual de R$ 7,2 milhões. Considerando os 6 anos do curso, o faturamento total com cada turma é de R$ 43,2 milhões. Só nos próximos 5 anos serão iniciadas 10 turmas, em cada um dos 95 novos cursos, totalizando 950 novas turmas, e gerando um faturamento acima de R$ 4,1 bilhões.

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A distribuição dos cursos (e de todo este faturamento) também não deixa de ser interessante. O estado a receber mais vagas é a Bahia, do ministro da Casa Civil Rui Costa, com 900 vagas. O segundo, curiosamente, é estado que já possui mais médicos no país: São Paulo, do ministro da Fazenda Fernando Haddad, com 780 vagas. O terceiro é o Pará, governado por Helder Barbalho, com 660 vagas. O quarto é o Ceará, domicílio político do ministro da Educação Camilo Santana (o próprio que anunciou a medida) com 600 vagas. E o quinto é o MA da família Sarney, com 540 vagas.

Segundo a ministra Nísia Trindade, responsável pelo Ministério da Saúde (que na semana passada promoveu evento com verba pública, com direito a dança erótica ao som da música “batcu”, da drag queen Aretuza Lovi), este projeto representa a retomada do protagonismo do governo federal na expansão dos cursos de Medicina.

Pelo menos nisso concordamos: é uma obsessão do governo federal o protagonismo na reedição de políticas fracassadas, que não trazem soluções mas geram bilhões, e criam excelentes números para impressionar leigos em campanhas eleitorais.

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Sobre o autor
Renato Assis

Advogado, professor, escritor, palestrante, debatedor, conferencista; Graduado em Direito pela Universidade FUMEC-MG; Pós-graduado em Direito Processual pela PUC-MG; Pós-graduado em Direito Médico pela Universidade de Araraquara/SP; Pós-Graduando em MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/RJ; Professor do curso de Direito Médico, Odontológico e Direito da Regulação da UCA (Universidade Corporativa da ANADEM); Especialista em Terceiro Setor e Direito Médico;

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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